"Aterroriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo; convosco sou cristão"

PALAVRA DO BISPO

A NECESSÁRIA RELAÇÃO ENTRE EUCARISTIA E A MISSÃO DA IGREJA.

Dom Nelson F. Ferreira
 
A presença de Cristo junto aos seus discípulos não terminou com sua morte e ascensão: esta continua viva e operante. É a eucaristia o modo privilegiado de sua comunicação (Aldazábal, A eucaristia, 99). Comendo esse único pão, que é o corpo do Senhor, torna-se um dos muitos em seu corpo eclesial. Este é o pensamento paulino em 1Cor 10,17 e em todo o contexto de 1Cor 11, há íntima relação entre o corpo eucarístico de Cristo e seu corpo eclesial. Não apenas se come o corpo de Cristo, mas converte-se cada um em corpo de Cristo (Hortal, Jesus. Os sacramentos da Igreja na sua dimensão canônico-pastoral, 106). 
 
Igreja e eucaristia são dois aspectos da mesma realidade: Ao comer Cristo “entregue por”, a comunidade recebe o impulso para viver ela mesma “por Cristo” e também “pelos outros”, imitando seu Senhor. Concelebramos a páscoa com o Senhor: comungamos com seu sacrifício, com sua ressurreição e sua parusia. A eucaristia é, pois, sacramento, tanto do sacrifício de Cristo histórico, há mais de dois mil anos e do “celeste”, como do sacrifício cotidiano de sua comunidade.
O sacrifício de Cristo presente no altar dá a todas as gerações de cristãos a possibilidade de estarem unidos à sua oferta (Igreja Católica, Catecismo da Igreja Católica 1368). A liturgia cristã não somente recorda os acontecimentos que nos salvaram, como também os atualiza, torna-os presentes. O mistério pascal de Cristo é celebrado, não é repetido; o que se repete são as celebrações; em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo que atualiza o único mistério.
Assim, a eucaristia para que seja realmente eucaristia não pode jamais separar-se da vida concreta. De fato, toda a história, a vida e a realidade humana estão incorporadas ao sacrifício pascal de Cristo.
 
A afirmação central que deve caracterizar a Igreja, a partir do memorial eucarístico, compreende-se como uma missão que lhe é própria: eucaristizar o mundo, isto é, tornar realidade na sociedade, o projeto de comunhão da Trindade…”O Concílio Vaticano II ensina que a eucaristia náo é apenas o “cume e a fonte da vida cristã” (SC 10), mas também “cume e fonte de toda evangelização” (PO 5). O mundo do qual se fala é o “mundo dos homens e de toda a família humana com a totalidade das coisas entre as quais vive; este mundo teatro da história do gênero humano e marcado por sua atividade: derrotas e vitórias; esse mundo criado e conservado pelo amor do Criador, segundo a fé dos cristãos; esse mundo na verdade foi servidão do pecado, mas o Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do Maligno e o libertou, para se transformar de acordo com o plano de Deus e chegar à consumação” (GS 2). 
 
Assim, a eucaristia não se fecha em uma celebração sacramental. Por seu próprio dinamismo de comunhão, ela tenderá a influir na conversão e transformação da vida dos participantes e da Igreja, pois comungar e adorar o corpo do Senhor, que está sobre o altar, é também saber discernir o corpo do Senhor, que é a humanidade. Os padres da Igreja, já nos primeiros séculos, enxergaram o profundo sentido da eucaristia e suas implicações sociais e eclesiais. “A pessoa humana, principalmente o nu, o prisioneiro (Mt 35,31ss.) é como “nossa segunda eucaristia” (Rosso, Luomo nostra seconda eucaristia, citado por Kunrath, “A Igreja e a eucaristia como missão”, 203-240). Em um mundo sofrido e oprimido, os cristãos são chamados a tomar consciência de que a celebração do memorial do Senhor é um projeto eucarístico para o mundo. 
 
Na medida em que a celebração da eucaristia se torna o motor efetivo de uma Igreja nascida e formada na graça da oferta livre e amorosa de Jesus Cristo, esta viverá, pela força do Espírito, a alegria da conversão e testemunhará sua participação no Reino de Deus. Pois, na medida em que a Igreja se torna a autêntica profecia de um mundo novo, e celebra a memória do Cordeiro, na liturgia e na práxis, “é mais perfeitamente ela mesma” (Medellín 9,3). Portanto, renunciar à sua missão, corresponderia a abandonar a causa de Jesus Cristo em favor da humanidade. De fato, um efeito essencial da comunhão eucarística é a caridade que deve penetrar na vida social. É reconhecer o Cristo da eucaristia no Cristo presente nos irmãos e irmãs, sobretudo nos menos favorecidos, pobres e marginalizados da sociedade, objeto da pregação de Jesus e do sentido de toda a sua vida. É assim que a eucaristia mantém a sua mensagem atual, necessária para construir uma sociedade onde prevaleçam a comunhão, a solidariedade, a liberdade, o respeito pelas pessoas, a esperança e a confiança em Deus.
 
Nessa convicção, “a eucaristia, na sua dimensão missionária, gera no tempo presente e projeta para o futuro uma Igreja servidora da mensagem evangélica, que da eucaristia busca sempre novas forças para a missão no mundo, isto é, uma Igreja sacramento de comunhão que, numa história marcada por conflitos, oferece energias incomparáveis para promover a reconciliação e a unidade solidária dos nossos povos” (Puebla, 1302). A eucaristia é uma força de vida que deve contagiar toda a terra, e a Igreja eucarística deve ser uma Igreja pascal que irradia vida (Jo 6,51). A Igreja entendida como mistério de comunhão e missão tem no memorial eucarístico a revelação do seu próprio ser: reconhecer o seu Senhor na fração do pão e levantar-se e voltar para anunciá-lo (Lc 24,13-35).
 
Dessa forma, a Igreja possui no mundo a missão de continuar o projeto eucarístico de Jesus e terminará sua missão quando o mundo todo estiver eucaristizado. Há uma tensão escatológica presente na eucaristia: o pão escatológico torna os fiéis participantes da redenção de Cristo no hoje, como também já os faz degustar as alegrias da eucaristia plena. É uma experiência antecipada das alegrias escatológicas, quando
…uma humanidade completamente libertada, constituída em fraternidade universal na qual “Deus será tudo em todos” (1Co 15,28), será a plenificação do projeto eucarístico. Por isso, o banquete final será uma festa de bodas (cfr. Mt 22,1-14) em que os homens todos, celebrando sua solidariedade e fraternidade, celebram sua comunhão com Deus. A Igreja vive da eucaristia desde as suas origens. No propósito de fidelidade à sua missão, ela reflete de maneira sistemática a respeito desta mesma missão. No decorrer dos tempos, concílios, congressos, comissões, documentos apresentam tal reflexão e apontam aspectos teológicos (cristológicos, pneumatológicos, eclesiológicos, litúrgicos, missiológicos e pastorais) na direção de bem celebrar, viver e testemunhar o mistério que recebeu do Senhor.
 
As palavras proferidas ao final da celebração eucarística, ite missa est, apontam que a conclusão de toda a santa missa, fazendo uma referencia imediata ao envio à missão. Por isso, onde buscar força senão na eucaristia, nascente inesgotável da missão, verdadeira fonte de comunhão e de solidariedade, de reconciliação e de paz? A memória de Jesus é dinâmica: ela projeta a Igreja para frente. A partir do encontro com seu Senhor, ela deve expressar na existência ordinária o que o próprio Cristo viveu sobre a terra, isto é, o amor de Deus que fundamenta o amor entre todos os seres humanos. 
 
Bibliografia
1-Aldazábal José. A eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002.         
 
2- Bento XVI. Sacramentum caritatis. Exortação apostólica pós-sinodal sobre a eucaristia. Fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007.       
 
3-Borobio, Dionisio. Eucaristia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2005.        
 
4-Brouard, Maurice (org.). Eucharistia. Enciclopédia da eucaristia. São Paulo: Paulus, 2007.         
 
5-Concílio Vaticano II. “Constituição dogmática Lumen gentium sobre a Igreja”. In: Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 2000.         
 
6-Léon-Dufour, Xavier. O Pão da vida. Um estudo teológico sobre a eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2007.